O Yuval Noah Harari traçou brilhantemente como a humanidade chegou a ser o que é hoje.
Eu tenho uma relação de amor e ódio com essa ideia.
Ódio, porque ela destrói tudo o que eu mais prezo.
Amor porque a cada conceito que ela destrói, ela abre um Universo de novos conceitos para mim.
Basicamente, humanos se distinguem dos outros seres vivos porque nós conseguimos cooperar flexivelmente em grandes números.
Parece bobo, mas cada segundo que você der para essa ideia você vai se surpreender com as conclusões que aparecerão.
E como nós conseguimos alcançar essa cooperação flexível em grandes números?
Através de ficção.
Seres humanos são capazes de criar uma segunda realidade, uma realidade fictícia acima da realidade factual.
Nós contamos histórias para nós mesmos e acreditamos em conceitos que não existem na realidade factual.
E esses conceitos trazem consigo regras. Regras que, quando seguidas, têm o poder de mudar a realidade factual.
Países não existem. São linhas imaginárias criadas pelos homens.
Religiões não existem. São exercício de pura vontade de acreditar em algo que não se pode ver.
Direitos Humanos, leis, autoridades, propriedades, cultura, línguas, amor romântico, família, arte, esportes, empresas... a relação de "papos pra boi dormir" que criamos para sustentar essa "realidade fictícia" é imensa.
Não entenda mal. Isso tudo é fantástico. Cada um desses conceitos nos tirou do mundo natural e criou o nosso mundo moderno. Cada uma dessas realidades fictícias cria regras e comportamentos que facilitam nossas vidas factuais. Que aumentaram a expectativa de vida do humano médio de 30 para 80 anos. Que nos trouxe refinamento do trabalho. Maior produtividade que acarreta em menos tempo para conseguir o básico para sobreviver e mais tempo para usufruirmos em momentos agradáveis.
Olhe por exemplo a maior ficção que a humanidade já criou: O dinheiro.
O dinheiro é a invenção que permite você guardar trabalho. Você trabalha mais do que precisa para viver. O excedente de produção você troca pelo excedente do seu vizinho. Porém, se você troca produto/serviço por produto/serviço, você fica preso no consumo imediato. Você precisa trocar o que produziu em excesso antes que estrague. E você precisa consumir o que recebeu na troca antes que esse produto também estrague. Você precisa continuar trabalhando o tempo inteiro para garantir que terá produto/serviço o tempo inteiro.
Então contamos a historinha do dinheiro. Algo sem valor objetivo, pelo qual podemos trocar itens que tem valor objetivo. Como exemplifica bem Harari, um macaco jamais vai trocar uma deliciosa banana madura que ele tem por um pedaço de papel colorido que o humano tem. Mas nós humanos trocamos. Nós humanos damos algo de real valor e recebemos com prazer esse pedaço de papel. Por quê? Porque nós contamos a historinha fictícia que esse papel poderá ser trocado novamente por algo de valor que nos agrade, no momento que nós precisarmos.
Dinheiro é algo idiota se você pensar sob a ótica da realidade factual. Mas essa realidade fictícia nos habilitou a "guardar o trabalho excedente". Transformando em dinheiro as bananas que eu trabalhei para produzir, eu posso manter esse trabalho guardado comigo por muito mais tempo do que a penca de bananas suportaria ser guardada em condições de consumo. E eu não preciso fazer trocas sucessivas para transformar o trabalho que eu tive em produzir essa penca de bananas em uma camisa, por exemplo. Eu ofereço bananas em um mercado para quem está interessado em comprá-las de mim. Então uso o dinheiro que recebi pelo trabalho excedente de produzir bananas para trocar pelo trabalho excedente do alfaiate de fazer uma camisa.
Essa realidade fictícia habilitou a humanidade a guardar o trabalho excedente. Empilhamos em números o esforço do dia a dia. Ao solucionarmos um problema, pudemos partir para outro problema. E a cada novo problema solucionado, pudemos seguir para problemas menores, mais específicos. Hoje, nos damos ao luxo de refinarmos os trabalhos a partes completamente específicas do conhecimento. Podemos nos aprofundar como nunca fizemos em soluções cada vez mais refinadas.
Mas mesmo assim, dinheiro é uma realidade fictícia.
E eu venho tentando unir esse conceito de realidade fictícia com a minha área específica de estudo e trabalho.
Eu lido com pessoas.
E pessoas são o inferno.
Eu lido com a cultura das pessoas.
E todos os dias eu saio da cama para enfrentar o desafio de mudar a visão de mundo de outras pessoas, para torna-las mais produtivas.
E o meu maior problema é que cada pessoa é diferente.
Agilista de palco adora reunir um grande grupo em uma sala, colocar na tela um power point lindão, fazer um standup cheio de humor e concluir com um conceito que deixe a todos catatônicos.
Pretensiosos.
A realidade factual é que cada pessoa nesse mundo possui seu próprio conjunto de realidades fictícias. Ok, dentro de uma mesma cultura provavelmente as pessoas terão um alto percentual de realidades fictícias muito similares. Eu arrisco que cerca de 80% das realidades fictícias de cada pessoa sejam iguais às das demais pessoas que vivem na mesma cidade.
Mas o fato é que nenhum de nós vive as mesmas realidades fictícias dos demais.
- Primeiro porque temos muitas realidades fictícias opcionais no nosso mundo. No mundo, hoje, são adorados mais de seis mil deuses diferentes. E em um país laico você pode escolher qualquer um deles, todos, nenhum ou o grupo de deuses que você quiser. E religiões são grandes influenciadores do comportamento humano. E são apenas uma das realidades fictícias que podemos contar para nós mesmos.
- Segundo porque realidades fictícias precisam ser entendidas pelas pessoas. E cada pessoa pode compreender de uma forma diferente. Só dentro do liberalismo clássico existem dezenas de vertentes diferentes e eu não concordo com diversos entendimentos dos demais liberais.
- Terceiro porque mesmo se duas pessoas escolherem a mesma realidade fictícia e entenderem ela do mesmo modo, com certeza outras realidades fictícias vão influenciar o comportamento da pessoa. Uma grande amiga liberal é cristã fervorosa. Eu concordo com tudo o que ela fala quando isola política e religião. Mas vez ou outra ela usa de conceitos religiosos para falar de política. E isso me deixa furioso de um modo que vocês não imaginam.
Assim sendo, é uma tarefa hercúlea ter como foco de trabalho a criação de times de alta performance. Você precisa entender cada pessoa do time, individualmente. Precisa se conectar com o conjunto de realidades fictícias que essa pessoa possui. Precisa entender onde essa pessoa se desvia do ideal do time de alta performance. Precisa compreender as motivações dessa pessoa, descobrir se ela aceita argumentos lógicos ou se essa pessoa precisa de argumentos emotivos. E não apenas isso: em se tratando de cultura, você precisa ter o coração aberto e demonstrar real engajamento para conquistar a confiança do outro. E somente com confiança é que as barreiras baixam e você consegue influenciar a mudança de cultura.
Eu disse que amava o trabalho do Harari, né?
Ele abre os olhos para conceitos surpreendentes.
Eu disse que odiava o trabalho do Harari, né?
O meu trabalho parecia tão fácil alguns dias atrás.