terça-feira, 27 de abril de 2021

Sobre "Filmes de hominho", Sapiens e como criamos a próxima geração

"Arthur! 40 anos batendo à porta e você continua acompanhando filmes de hominho? Não tem vergonha?"

"Filmes de hominho" são apenas uma versão moderna de mitos e lendas. Mitos e lendas acompanham a humanidade desde o princípio. Constelações são mitos e lendas. Religiões são mitos e lendas. Como bem aponta Harari no seu livro Sapiens, o que difere o ser humano das demais espécies é a capacidade de cooperar em grandes números. E essa cooperação se dá porque a humanidade cria uma "segunda realidade" sobre a realidade factual. Pré-estabelecemos mitos que guiam os papéis para atingirmos essa cooperação. Nesse cenário, não apenas valores morais e escolhas frente a dilemas formam mitos e lendas, mas itens abstratos que temos como reais são mitos e lendas, como países, moedas, leis, mercado, esportes, etc...


Nesse sentido, os "hominhos" são seres superpoderosos. Muitos com poderes de deuses, o que muitos de nós acreditam que seria o suficiente para resolver qualquer problema.
Mas os "hominhos" também possuem sua própria carga de valores e seu próprio contexto. E o interessante desses mitos modernos é que eles geram conexão com o público. Porque, veja bem, o mito do Rei Midas, da Meduza, do Minotauro e até mesmo Hércules ou Teseu já estão em contextos desatualizados, com morais e valores que precisam ser "atualizados" para conversarem com o público atual.
Ao criar um Capitão América, um Homem de Ferro ou um Batman, conseguimos desenvolver mitos que poderiam estar vivendo nas nossas ruas. Muito mais próximos do que vivemos, hoje. E essa carga de valores e morais enfrentando os problemas que você ou eu temos hoje em dia.


Nós acreditamos que é fácil para o Capitão América ou para o Homem de Ferro enfrentar qualquer desafio. Eles são superpoderosos! Mas a realidade é que eles passam por dilemas morais e dificuldades tão grandes quanto nós. E por serem símbolos, eles precisam manter sua coerência e enfrentar as consequências, tal qual nós fazemos.
E, por fim, é inspirador ver o herói passar por toda sua jornada. Crescer enquanto ser humano. Se sacrificar pelo bem maior, por aquilo que acredita e por aquilo que é certo ser feito.

Eu não sei vocês. Mas eu quase perco minha cabeça quando vejo alguém ostentando o símbolo de algum super herói enquanto é cuzão. Um desrespeito a tudo o que o herói luta e defende.

Nesse cenário, os "hominhos" são os protagonistas dos novos mitos. Personagens que, tais quais Sansão, Dalila, Ícaro, Édipo ou centauros, elfos, orcs e anõs, criam toda uma discussão sobre temas cruciais para o bom desenvolvimento do dia a dia das pessoas.

De forma geral, a sociedade precisa passar para as novas gerações os mitos pré-estabelecidos, de modo que as novas pessoas que compõem nossa sociedade possam assumir os papéis que vamos deixando para eles, no desenvolvimento do nosso mundo. E esses papéis estão expressos dentro dos mitos que criamos e repassamos.
Entretanto, no nosso mundo moderno, a produtividade tornou-se ponto focal do sucesso das pessoas. Assim, mais horas de estudos, pesquisas, leituras e trabalho são necessárias. Os níveis de estresse aumentam a tal ponto que o tempo de lazer deixa de ser algo trivial e passa a ser o momento de recarregar as energias e capacidade cognitiva para enfrentar a próxima jornada de trabalho. Nesse contexto, a criação dos filhos fica mais e mais ameaçada. Não é a toa que nos últimos 50 anos a natalidade caiu de 4 filhos por mulher para os atuais 1,8 filhos por mulher.
Outra prática que se tornou comum foi justamente a terceirização da criação dos filhos. Nesse último século foi - e ainda é - prática comum deixar filhos com avós, creches ou simplesmente na frente da TV, mesmo.

E por isso os "hominhos" têm ganhado tanta relevância na sociedade. Porque nossos avós já aprenderam com o Super Homem e com o Batman conceitos, valores e mitos que puderam utilizar na sua vida pessoal. Nossos pais aprenderam conceitos com o Homem Aranha, também. E nós estamos sendo apresentados a todo um mundo de filosofias através do Homem de Ferro e do Capitão América.

Quer chamar de "filme de hominho"? Chame. À vontade.
Mas entenda que o papel desses heróis é justamente discutir e criar os mitos que vão reger a sociedade daqui alguns anos.


Eventualmente a sociedade encontrará novos desafios, que exigirão novos valores, que criarão novas filosofias e modos de encarar o mundo. Eventualmente alguns destes heróis serão adaptados e até mesmo aposentados.

Mas uma coisa eu asseguro a você: chame do jeito que chamar, sempre teremos "hominhos" em histórias fantásticas para discutir nossos valores e nossa moral.
Porque a humanidade ama histórias. A humanidade ama mitos. E é mais fácil criar um personagem para dizer as coisas que nós queremos dizer.

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