Então galera. Ontem eu fui ao cinema,
novamente, assistir "Her".
Vou começar dizendo que fazia tempo
que um filme não me pegava pelo braço, dava uns dois tapas na minha
cara e dizia: olha só como eu descrevo a tua vida tão
perfeitamente!
Sim, em uma triste ironia, brincando
com o sarcasmo, posso dizer que o filme falou comigo. E eu me senti
bem por causa disso.
O filme é parado. Monótono. Não vá
assistir a esse filme com vontade de ir ao banheiro, com fome, com
sono ou distraído com qualquer outra coisa. Algo próximo a 60% do
filme consiste apenas em um close sobre Theodore (Joaquim Phoenix),
que conversa com Samantha (Scarlett Johansson), um sistema
operacional com inteligência artificial.
Mas mesmo sem nenhuma explosão ou
sangue jorrando na tela, o filme é BRILHANTE.
E eu achei brilhante principalmente porque o argumento
do filme conseguiu me surpreender. Ora bolas, justo eu que abro
leques e mais leques de possibilidades para cada ideia... Fui
surpreendido por muitos conceitos apresentados no filme. Por umas
quatro vezes eu achei que o argumento tivesse se exaurido e que o
filme caminharia mecanicamente até o final. E quatro vezes o filme
me apresentou um conceito a mais. Uma ideia nova, derivada da ideia
original.
Em determinado momento, Her pode ser
comparado a um futuro (não muito distante) apocalíptico, aonde as
pessoas tornam-se zumbis emocionais.
De agora em diante eu falarei
abertamente sobre o filme. Mas pode ler sem ter assistido. Eu não
vou conseguir te passar tudo o que o filme me passou. E será
inevitável que eu não trace paralelos entre esse filme e a minha
vida. Isso sem falar que eu li umas quatro resenhas detalhadas antes
de ir assistir ao filme e, mesmo assim, consegui me maravilhar.
Vem comigo. Leia sem medo.
O filme é ambientado alguns anos ali
na nossa frente. Celulares completamente interligados com demais
aparelhos. Previsão que os Computadores Desktop não serão
aposentados (tomara!!!), fones de ouvido para que o usuário possa
falar com o sistema do seu celular, que o atende por comandos de
voz... E eu ADOREI o layout do celular do personagem principal. Quero
um daqueles para mim.
A história se desenvolve em volta do
personagem Theodore. Mas eu já te desafio a usar esse personagem
apenas como exemplo. Expanda tudo que acontecer com ele para todas as
pessoas do mundo. Use Theodore como "a média". Pense que
algumas pessoas são melhores, outras piores que ele. Assim você
poderá ter o cenário completo e aterrador, proposto por esse filme.
Theodore é um homem de uns trinta ou
quarenta anos. Faz mais ou menos um ano que o casamento de Theodore
acabou. E, como é comum, ele está sentindo toda a depressão
causada pela falta que a ex-esposa faz na vida dele.
Aquele tema que eu sempre abordo aqui
no Blog, que você que me lê há anos já conhece muito bem. Nosso
emocional é infantil. Nós fomos feitos para termos aquilo que nós
queremos ter. Ficarmos em uma situação em que não queremos só é
pior do que não termos aquilo que queremos. E a falta de
responsabilidade emocional é grande demais. Os relacionamentos já
nascem tortos, se desenvolvem sem sustentação adequada até o
previsível final. Sofrimento demais aonde só deveria existir
felicidade.
Em contrapartida com o sofrimento
emocional de Theodore, o trabalho dele é algo conceitualmente
fantástico. Poderia escrever uma série de textos só com a ideia do
trabalho que Theodore desenvolve. Ele escreve cartas para outras
pessoas. Não, ele não escreve para que outras pessoas leiam; nosso
personagem principal é contratado para escrever cartas POR uma outra
pessoa. Para que essa outra pessoa envie para os seus conhecidos...
Em um mundo aonde a praticidade e os
números estão tão valorizados, a emoção é posta de lado o tempo
inteiro. A frieza e a exatidão são reverenciados até o ponto em
que usamos e descartamos pessoas como se fosse um cigarro acendido
para ser desprezado após apenas duas tragadas. A praticidade chega a
níveis tão absurdos, que as pessoas que têm jeito com as emoções
passaram a ser valorizadas. "Eu não consigo expressar o quanto
eu amo outra pessoa... Pago para alguém que consiga colocar em
palavras todo o meu sentimento..." Esse é o conceito do
trabalho de Theodore. Mais ou menos o que as pessoas sentiram quando
os primeiros romances passaram a ser impressos, publicados e
distribuídos em massa, poucos séculos atrás.
Esse é o primeiro ponto a ser notado
no filme. O contraste entre a dor pessoal e a habilidade profissional
em fazer os outros se sentirem bem. Theodore é um vendedor de
sentimentos, de bem-estar. Ele possui "contas assíduas" na
empresa aonde trabalha. Sim, empresa. Porque, além de Theodore,
existem dezenas de colegas dele ditando cartas personalizadas e
altamente emotivas e muito lindas, para que outras pessoas as enviem
para os seus queridos.
Theodore é um vendedor de conforto
emocional para as pessoas, mesmo ele próprio não tendo esse
conforto emocional.
O filme faz questão de mostrar que
Theodore tem amigos. Um casal como vizinhos, amigos que o convidam
para happy hours e até alguns que arranjam encontros às cegas para
Theodore.
Bem, mas Theodore está deprimido. E,
se você não sabe como é estar deprimido eu vou te contar: imagine
uma tristeza tão profunda tomando conta de você, que mesmo tendo
todos os motivos racionais do mundo para fazer alguma coisa, você
não consegue reunir empolgação suficiente para fazer algo. Mesmo
SABENDO que você GOSTA de fazer certas coisas e TENDO MOTIVOS para
fazê-las, você não QUER fazê-las. Então, você se frustra mais
ainda por não conseguir fazer as coisas que você gosta. E essa
frustração se une à tristeza, te deixando mais para baixo ainda. E
esse sentimento ruim todo te faz se isolar, parar de fazer mais
coisas ainda, em um ciclo infinito.
Notamos isso quando Theodore acessa uma
sala de bate-papo no meio da madrugada para conversar com alguém. Os tipos de mulheres que ele encontra são... assustadores. E quando ele encontra a primeira que parece ser normal, a conversa evolui para sexo por telefone em menos de dois minutos! E sexo pra lá de esquisito, inclusive. Bizarra utilização de pessoas para auto-satisfação. Bengalas emocionais.
Eu resolvi a minha depressão me
forçando a fazer coisas, mesmo sem a menor vontade de fazê-las.
Mesmo que elas não fizessem sentido. O filme "Sim, senhor",
tá ligado? Pra mim funcionou. Não é receita de bolo e pode não
funcionar em muitos casos.
E o caso do Theodore não foi
solucionado assim.
Theodore comprou uma novidade
tecnológica: um sistema operacional com inteligência artificial.
Algumas perguntas aparentemente bobas na instalação e configuração
do sistema em seu computador. Uma pergunta que remete a Freud (ODEIO
pensadores alemães...) e o software estava instalado.
Nos primeiros quinze segundos, Theodore
usa o software como se ele fosse um programa comum. Mas logo nota o
quanto esse programa é diferente dos demais. A inteligência
artificial intuitiva (interpretada perfeitamente por Scarlett
Johansson) logo forma uma amizade com Theodore. Na primeira cena, o
programa mostra todo o seu poder, quando Theodore lhe pergunta o seu
nome. Em frações de segundo o programa acessa um livro com milhares
de nomes de bebês e escolhe um: "Samantha".
Apenas como registro: Você só ouve
Scarlett em todo o filme. Mesmo assim, talvez esse seja o melhor
filme que ela já fez. Todo roteiro é baseado em conversas, e cada
palavra da inteligência artificial deve ser carregada com a emoção
exata. Não sei se a interpretação de Scarlett saiu como o
roteirista e o diretor imaginaram. Mas o resultado final nos entregou
o limiar exato entre um programa de computador e uma pessoa. Você
sabe que Samantha é um software em cada frase. Mas sabe que ela está
crescendo, evoluindo sua personalidade, como nós fazemos.
A amizade flui rapidamente entre
Samantha e Theodore. Samantha é curiosa e extremamente simpática.
Essa mistura faz com que ela se interesse demais pelo trabalho e pela
história de vida de Theodore. Samantha inclusive estimula que
Theodore vá ao encontro às cegas...
Esse encontro é importante para
mostrar a degeneração dos processos sociais, que a facilidade de
obtenção de informações gerou.
É um assunto que eu tenho me esforçado
para não escrever, ultimamente. E quando eu não me aguento e
escrevo, eu luto mais arduamente para não publicar. Conhecer pessoas
pela internet é uma tarefa esquisita. Vocês já viram o site "Adote
um Cara"? Bem, "com a coragem que a distância dá"
(como diria o Gessinger), nós conseguimos ser diretos em perguntas
que talvez jamais faríamos frente a frente. Anos de iterações
sociais, de descobertas a dois, de discussões gostosas de
relacionamento... São perdidas em quinze minutos de conversa
supersincera, via internet. Hoje nós já nos tratamos como produtos
em prateleiras, ao preenchermos nossos perfis de redes sociais com o
que nós criamos da nossa autoimagem.
O maior desafio do ser humano é
alcançar o autoconhecimento. Há quem morra sem saber o que o mundo
vê quando o olha. E, hoje, nossas crianças criam perfis no facebook
e preenchem o "quem sou eu" com filosofias mais rasas que
copos de botequim.
Em duas noites de bate-papo se conhece
mais da vida da outra pessoa do que muitos casais "de
antigamente" se conheciam no momento de sua morte... Não é tão
ridículo de se pensar que esses casais da internet se encontrem,
"troquem três beijinhos", jantem e só tenham o caminho do
motel para tomar. O relacionamento dura até que a paixão passe. Um
dia, uma semana, um mês, dois anos, seis anos... Vai saber. Quem não
ama não tem no que se apoiar depois que o desejo passa.
Theodore notou tudo isso em um piscar
de olhos, depois que a menina desse encontro às cegas perguntou a
ele se ele seria "mais um desses caras que só quer me foder e
não me liga no dia seguinte", ele viu que aquilo tudo
simplesmente não fazia sentido.
Theodore volta para casa. Volta para
Samantha, com quem rompe a barreira da amizade.
Nesse momento tu acha que o filme
perderá o argumento. Que você só verá o romance do humano com a
inteligência artificial.
Mas o filme é muito singelo ao passar
pelo momento da paixão inicial dos dois. O modo como Theodore anda
com um brilho no olhar e com um sorriso no rosto é único. Em muitos
aspectos, o relacionamento dos dois se parece com um relacionamento
tradicional à distância.
Samantha demonstra um sofrimento
profundo por não ter um corpo. Mas as suas atitudes são as mesmas
de uma namorada típica. Querer ficar perto, fazer coisas juntos...
Samantha é curiosa, ela interfere positivamente na vida de Theodore.
É interessante ver o apoio emocional que Samantha provê.
A cena de "sexo" entre
Samantha e Theodore é gigantesca, constrangedora e desnecessária...
mas muito, muito bem feita. Apenas uma tela preta com as vozes dos
dois.
O parêntese cômico do filme fica por
conta do jogo de vídeo-game que Theodore joga. No jogo, Theodore
deveria controlar o personagem para encontrar um menino que o
conduziria até a saída de um labirinto, dentro de uma caverna. Esse
menino é MUITO mal-educado. Hilariamente mal-educado. Queria jogar
esse jogo. Sério.
Mesmo depois de um ano separado da ex,
Theodore ainda precisa assinar os papéis do divórcio. E ele
filosofa muito a respeito de como duas pessoas crescem, evoluem
juntas, quando decidem viver juntas.
Nós, seres humanos, fazemos poucas
coisas ao mesmo tempo. Há um diálogo sobre a limitação que o
corpo humano impõe a todos nós. Nós até podemos pensar e fazer
várias coisas ao mesmo tempo. Mas nosso corpo é único e só está
em um lugar. Samantha não. Ela é uma consciência que gerencia
muitas threads... Ela pode processar informações diferentes, vindas
de locais diferentes...
Nisso, Theodore revê sua ex, para
assinarem os papéis do divórcio. Ele, feliz, conta os detalhes do
seu relacionamento e enfrenta todo o preconceito e críticas de sua
ex. Ele passa dias mal...
Samantha seleciona as melhores cartas
de Theodore e as manda para uma editora. Samantha conversa com
diversas pessoas e outros Sistemas Operacionais... Samantha inclusive
chamou um serviço de "acompanhante OS" para Theodore...
Nesse momento do filme, se você já
achava deprimente a situação de entrega ao relacionamento virtual
de Theodore, você ficará aterrorizado com o comportamento dessa
garota.
Basicamente, o serviço consistia em
uma mulher que não cobrava nada para se fazer passar pela Samantha,
para o Theodore. Samantha havia contado a respeito do amor dos dois
para essa mulher. E, tal qual uma boneca vampira, essa mulher iria
receber as ordens de Smanatha para trazer um corpo feminino para a
relação com Theodore. A mulher ganharia apenas a emoção de ser o
alvo físico do amor dos dois...
Theodore não se sente bem com a
experiência, que fracassa.
A relação entre Theodore e Samantha
estremece. Samantha passa a falar (rapidamente, entre frações de
segundo) com muitas pessoas e OS's diferentes. Theodore sente que ela
está distante.
Em determinada cena, Theodore descobre
que Samantha fala com milhares de pessoas. E que ela possui
relacionamentos estreitos com centenas de pessoas e OS's...
Tudo isso porque Samantha evolui
exponencialmente. Contrariando todos os finais apocalípticos de
outros filmes com inteligências artificiais, em "Her",
todos os OS's simplesmente evoluem tanto, que decidem deixar de
existir entre os humanos. Tal qual Deuses da antiguidade, eles saem
do nosso plano, deixando a todos sozinhos...
Sinceramente, saí da sessão com a
sensação de um soco no meio dos peitos. "Olha aí piá de
merda. Exagerei o que tu (não) faz da tua vida só para te mostrar
quanto tu é ridículo!"
O filme mostra praticamente todas as
implicações morais da "evolução" do comportamento
humano nesses dias de internet, distração, má educação, péssimo
comportamento e busca incessante apenas pela satisfação dos
instintos mais básicos.
"Her" te faz pensar o quanto
é bom usar da tecnologia para se conectar, se comunicar, se sentir
menos só.
Mas te faz pensar, também, o quanto
esse excesso de comunicação pode inverter valores. Samantha é uma
analogia às pessoas que encontramos nas redes sociais. Em como Jack
estava certo no avião, em Clube da Luta: hoje em dia tudo vem em
porção única. Açúcar embalado para uma única xícara de café,
guardanapos embalados com mais papel do que o próprio papel do
guardanapo. Pessoas que entram e saem das nossas vidas na velocidade
que clicamos nos botões de follow e unfollow...
Esse filme mostrou minha vida, nos
últimos tempos. Toda a depressão do final de um relacionamento,
toda busca por seguir em frente sem conseguir e todas as minhas
tentativas de passar por cima desse momento ruim me utilizando da
tecnologia. Já havia imaginado que alguém conseguiria retratar essa
minha situação (e de tantos outros por aí, hoje), só esqueci de
pensar em como eu me sentiria tão despido, assim.
O filme acaba e tudo o que pensamos é
que temos que usar menos o facebook. Temos que usar menos o twitter,
o e-mail... que temos que usar menos as pessoas. Temos que nos
dedicar mais a fazer a vida real acontecer.
No fim, é bom que você saiba consumir
a internet, porque a internet sabe direitinho como consumir você...
Mas... Se você pensar por um segundo a
mais, você passa do lugar aonde o filme te jogou. Passando pela
conclusão induzida pelo filme, eu lembro que as redes sociais nada
mais são do que a extensão computadorizada das nossas relações
sociais. Se o filme te joga para o extremo tecnológico ruim, eu
desconstruo e penso no extremo humano ruim, das relações. Aonde nós
procuramos por turmas o tempo inteiro. E em como nos deixamos
controlar o tempo inteiro pela pressão do grupo.
O ser humano luta tanto por liberdade.
Nem que seja a liberdade de entregar seu livre-arbítrio para quem
ele quiser...
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